Raúl Ruiz e diálogos no exílio

Raúl Ruiz e diálogos no exílio

A obra do chileno Raúl Ernesto Ruiz Pino, ou simplesmente Raúl Ruiz (ou ainda Raoul Ruiz, como é conhecido por muitos), é imensa em todos os sentidos da palavra. De fato, mesmo contando mais de 100 títulos, parece continuar aberta a adições, como a recente notícia de que El tango del viudo (1967), uma primeira experiência em longa-metragem dada como perdida, teve uma cópia descoberta. Para exemplificar como sua obra é vasta, vale lembrar que Ruiz recebeu atenção, em 2016, de uma das mais relevantes experiências cinéfilas em Curitiba (o cineclube do Coletivo Atalante). No entanto, não há nenhum filme que exibiremos agora que repita títulos dos filmes exibidos naquela ocasião – e vice-versa. São muitos, infindáveis mesmo, os caminhos para se aproximar dessa obra, onde a questão numérica não é a mais significativa para entender seu efetivo alcance.

Ruiz, nascido em 1941 no Chile e falecido na França em 2011, sempre buscou romper as fronteiras das formas narrativas tradicionais através de uma busca incansável por novas formas de contar histórias. Dessa maneira, ele foi muitas coisas em sua obra: documentarista, fabulador, satírico, expressionista, surrealista. Ruiz deixou o Chile natal ainda na juventude para trabalhar e estudar em outros países. Retornou e realizou em seu país de origem alguns de seus filmes mais reconhecidos, como o ganhador do Festival de Locarno, Três tristes tigres (1968). Após o golpe de 1973, como tantos outros artistas chilenos, se viu forçado a passar da condição de nômade para a do exílio, termo que passa a usar como identidade. O conceito de exílio reverbera em quase tudo que o seu cinema prolífico e épico nos apresenta, carregando dimensões políticas e existenciais.

Quando decidimos dedicar parte da nossa retrospectiva desse ano a Ruiz, foi bem natural a maneira como, aos poucos, a ideia do exílio logo surgiu como um norte possível para a seleção das obras a exibir em meio à vasta produção do cineasta. Decidimos, então, focar em oito filmes de Ruiz em que o exílio reverbera de maneiras distintas, sendo o primeiro de 1968 e o último de 1983. Ao tomarmos essa decisão, porém, nos veio uma ideia tão essencial como óbvia: o exílio não esteve, nem está, apenas em Ruiz – especialmente se pensamos na América Latina e na experiência brasileira.

De fato, o primeiro filme finalizado por Ruiz na França, inspirado numa peça de Bertolt Brecht sobre refugiados, teve por título Diálogo de exilados (1975). Pareceu profícua, assim, a ideia de colocar em diálogo o olhar e a particularidade de Ruiz com as experiências dos cineastas brasileiros que também criaram ou viveram no exílio naquele mesmo período, tão próxima da duração da ditadura brasileira (1964-1985). Optamos, nesse caso, pela multiplicidade de vozes: tentar exibir filmes de um grande número de realizadores brasileiros, realizados em experiências de exílio vividas em diferentes lugares do mundo.

Acreditamos que, entre as diferentes obras de Ruiz e os vários cineastas brasileiros, emerge um caleidoscópio rico da forma como o exílio penetra na pele do artista latino dessas décadas. E, acreditamos acima de tudo, que essas décadas precisam, cada vez mais, ser ouvidas hoje, onde a ideia mesmo de exílio parece muito mais real e palpável do que a imaginávamos ainda há pouco.

Por fim, é importante falar da questão prática das cópias disponíveis para exibição. Por um lado exibiremos da parte da obra de Ruiz sete filmes em cópias digitais restauradas recentemente (e o oitavo numa cópia remasterizada), todas fruto de um esforço transnacional de preservação de seu trabalho, realizado por entidades como a Cineteca Nacional de Chile, a Cinemateca Francesa, o INA (também francês) e a associação Les Amis de Raoul Ruiz. Já as cópias dos filmes brasileiros variam bastante de qualidade. Alguns cineastas mais reconhecidos, como Glauber Rocha, Ruy Guerra e Júlio Bressane tiveram a possibilidade de ter seus filmes do período restaurados ou remasterizados por iniciativa local ou mesmo internacional. Já os outros cineastas têm suas obras exibidas nas melhores cópias digitais existentes (muitas vezes, as únicas) – eventualmente precárias, mas ainda assim acreditamos que necessárias para que se conheçam esses trabalhos muitas vezes apagados da história.

Assim como efetivamente apagados parecem estar outros filmes brasileiros que tínhamos conhecimento de sua existência mas dos quais simplesmente não conseguimos localizar cópias (filmes de Lauro Escorel, Silvio Tendler, Zózimo Bulbul, Luiz Carlos Prestes Filho, entre outros). Tudo isso nos leva a dizer que ambos os lados dos diálogos dessa retrospectiva desenham retratos incompletos. De um lado, a impossibilidade do acesso total devido à imensidão de uma obra; do outro a sensação de um apagamento igualmente enorme, pela dificuldade do acesso e a precariedade da preservação cinematográfica no país. É, portanto, uma mostra possível ainda que não a ideal – um tanto como o sentimento da existência no exílio, muitas vezes.

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