DERIVAS DA FICÇÃO: NOTAS SOBRE O CINEMA DE JEAN ROUCH

DERIVAS DA FICÇÃO: NOTAS SOBRE O CINEMA DE JEAN ROUCH

DERIVAS DA FICÇÃO: NOTAS SOBRE O CINEMA DE JEAN ROUCH

Jean-André Fieschi*

 [Este texto consiste em um excerto (págs. 28 a 31) do artigo homônimo publicado no catálogo “Jean Rouch: Retrospectivas e Colóquios no Brasil” (2009) vinculado à mostra realizada pela produtora Balafon em 2009/2010. Agradecemos a Mateus Araújo Silva, tradutor do original em francês, além de organizador da mostra e do catálogo, por nos autorizar a publicação aqui. O artigo completo está disponível em: www.fafich.ufmg.br/devires/index.php/Devires/issue/view/12]

Rouch (…) será um dos grandes prospectores do cinema contemporâneo. Ao contrário de uma prática jornalística mistificada, à la Leacock, de pseudo não intervenção, ele trabalhará sobre processos, interações, numa invenção recíproca entre matéria e método, filme e discurso. O mundo nunca se dá tal e qual a inocência de uma película, a virgindade de um olhar. E, aliás, qual mundo? Poderíamos dizer, para simplificar, que o deslocamento do cinema de Rouch se efetua cada vez mais claramente na direção do imaginário. É bem verdade que este já estava inscrito e realizado desde os primeiros filmes sobre ritos. Mas pouco a pouco ele vai ficando diversamente delimitado, desvelado, cada vez mais tributário de um sistema de representação mais mediado que o do simples registro, inscrevendo a parte de fabulação própria a todo sistema de representação (de um indivíduo num grupo étnico, social, ou do próprio grupo), sem esquecer a parte, apagada e central, do observador que a recolhe (filtrando-a, desenvolvendo-a, dando-lhe forma), e dos meios técnicos que a encaminham até seu acabamento espetacular, produto de depósitos sucessivos pertencentes a diversos sistemas (sistema social e cultural em que se efetua sua recepção, sistema cultural e técnico em que se efetua sua transmissão). O cinema de Rouch é esse receptáculo de uma rede particularmente complexa de translações e deslocamentos que nos permite compreender de outro modo, em seus efeitos mais produtivos, a frase de Lévi-Strauss citada há pouco, sobre o exílio assumido do etnólogo: “Ele nunca mais, em parte alguma, se sentirá em casa”. Esta é mesmo a única acepção em que se pode entender a designação de Rouch como cineasta exótico. Exótico, é bem verdade, mas só por seu flanco africano?

Eu, um negro (1957-8) coloca claramente a questão desse descentramento, isto é, a questão do “quem fala?”. O filme que se auto-intitula dessa forma? O autor exibindo ironicamente a diferença de seu estatuto? Um de seus personagens? Seja como for, dessa vez é um monólogo que se dá a ver ou a escutar. Mais precisamente: um tecido de monólogos se unindo em uma única via feita de uma soma de diferenças. Os personagens: reais (eles existem, podemos encontrá-los, em Abidjan por exemplo, Abidjan das lagunas). Desdobrados, também, por trás das figuras míticas que eles mesmos elegeram, como Dorothy Lamour ou, desdobramento de segundo grau fundindo ator, personagem e função, Eddie Constantine / Lemmie Caution / agente federal americano. Ou ainda: Ray Sugar Robinson.

O que Rouch filma então, e em primeiro lugar, não são mais as condutas, ou os sonhos, ou os discursos subjetivos, mas a mistura indissociável que os liga um ao outro. O desejo do cineasta é dedicar-se ao desejo de seus personagens, organizando-o. De segui-los passo a passo, na linhagem, se quisermos, do projeto fundamental neo-realista (zavattiniano), mas rente à palavra deles (ao que ela revela) pelo menos tanto quanto à sua conduta. Encarnando seus fracassos, suas utopias, suas fomes. A guerra da Indochina contada (imitada) por um, os navios designados pelo outro, no porto, quando ele afirma ter viajado em todos os mares e conquistado todas as mulheres, o monólogo do galã na saída da missa, a briga provocada com o italiano: momentos inesquecíveis em que se inscreve o vestígio dos filmes vistos pelos personagens, das histórias em quadrinhos lidas por eles, das narrativas que eles ouviram e que, com uma distância e um fascínio inimitáveis, eles restituem num novo relato, feixe de relatos estratificados alhures e diferentemente, desenvolvendo um espaço lúdico que o cineasta inventa e provoca ao mesmo tempo, e do qual se apropria. Toda distância entre improvisação e premeditação parece aqui abolida, como se (mas o “como se” deve ser fortemente sublinhado), de agora em diante, fosse possível uma transparência entre espaço mental e espaço representado. Ao preço, parece, de uma cumplicidade, de um espírito de clã (entre autor e personagens), ou mesmo de um certo gosto da burla e da mistificação que são signos de uma infância preservada e retomada. Este ponto é capital, tanto pelo que ensina do desejo de Rouch quanto pelo que revela da inflexão rumo à criação coletiva (esses personagens logo se tornarão técnicos tanto quanto atores, quase “profissionais”, seríamos tentados a dizer se o termo não fizesse sorrir nesse contexto). Criação coletiva, improvisação, espontaneidade, cumplicidade: talvez sejam esses os meios privilegiados pelos quais Rouch, de observador de ritos, cruzou a linha para se tornar, a seu modo, criador de ritos.

Eu, um negro é seguramente um ponto de inflexão, no cinema de Rouch e no cinema em geral. Dizendo mais, certamente, sobre Treichville e seus habitantes do que muitas constatações de aparência mais “objetiva”. Dizendo mais, e sobretudo, de modo diferente. Nos Mestres loucos, os próprios membros da seita criavam a mise en scène de seu delírio coletivo em que, vestidos com trajes imaginários de personagens emblemáticos da colonização (o governador, o general, o cabo, o condutor de locomotiva), davam diretamente o espetáculo de um imaginário em ato: uma representação “selvagem” e “regrada”. A partir de Eu, um negro, é toda uma função nova da câmera que se estabelece: não mais simples aparelho de registro, mas agora agente provocador, estimulante, deflagrador de situações, conflitos, itinerários que, sem ela, jamais aconteceriam ou, em todo caso, jamais daquela forma. Não se trata mais de fazer “como se” a câmera não estivesse ali, mas de transformar seu papel afirmando sua presença, sua função, transformando um obstáculo técnico num pretexto para o desvelamento de coisas novas e surpreendentes. Trata-se de criar, pelo ato mesmo de filmar, uma concepção completamente nova do acontecimento fílmico. Diante da câmera de Rouch, que os precede ou os segue, os habitantes de Treichville interpretam primeiro o que eles mesmos escolhem mostrar de si mesmos. Depois, vendo-se na tela, comentam sua atuação, a duplicam ou a deslocam. Um objeto cultural complexo nasce assim dessas operações sucessivas, pelas quais se abre uma via praticamente inexplorada, um cinema da aventura, tanto a do material quanto a de sua descoberta.

 

(Tradução: Mateus Araújo Silva)

Sobre o autor: Jean-André Fieschi (1942-2009) foi cineasta, crítico e professor de origem francesa.


O INSUSTENTÁVEL OLHAR DO FILME ETNOGRÁFICO

Mahomed Bamba**

[Este texto consiste em um excerto (págs. 99 a 101) do artigo de título “Jean Rouch: cineasta africanista?” publicado na revista DEVIRES – Cinema e Humanidades, v.6, n.1, p. 92, de jan/jun 2009. Agradecemos aos editores da revista por nos autorizarem a publicação aqui, em especial a Mateus Araújo Silva enquanto organizador do dossiê temático Jean Rouch. Este artigo completo assim como os dois números da revista dedicados ao cinema de Rouch estão disponíveis em: www.fafich.ufmg.br/devires/index.php/Devires/issue/view/12]

O que filmes como Kenya (1961), de Richard Leacock, The boy Kumasena (1952), de Sean Graham, Afrique 50 (1950), de Roger Vautrier, e a obra de Jean Rouch têm em comum? Todos têm a marca indelével da estética do cinema etnográfico. Ilustram, cada qual à sua maneira, os três eixos da problemática da alteridade, tal como definida por Todorov (A conquista da América, 2003) sobre a relação de Las Casas com os índios. São filmes feitos por cineastas ocidentais, com paixão e, às vezes, com um senso de engajamento político, sobre um continente e seus costumes. São filmes sobre a descolonização. No entanto, todos carregam o problema da condescendência no olhar. Esse sentimento é reforçado ainda mais quando se pensa que trazem representações pitorescas de lugares onde o direito de olhar para sua própria realidade continuava sendo, para os nativos, um objeto de conquista. Sem contar o fato de que muitos desses filmes eram obras encomendadas. As mesmas críticas feitas ao africanismo, na sua versão antropológica, encontram eco nas dúvidas e na perplexidade que despertam os filmes etnográficos em que a prepotência de entender melhor os africanos se mistura com a ambição de explicar a África a um público ocidental. Nessa lógica, o africanismo de qualquer etnólogo-cineasta passa a ser assimilado à busca de exotismo que subjaz à dominação colonial. Embora os documentários de Jean Rouch sobre a África dos anos 50-60 não compartilhassem a lógica e a ideologia do discurso colonial, a reminiscência do contexto histórico do qual esses filmes emanam continua problematizando sua leitura.

A partir daqui convém se perguntar se as imagens produzidas por Jean Rouch sobre a África expressam uma vontade de superação ou um gesto de prolongamento do velho eurocentrismo na representação do Outro. Até que ponto se pode acusar seus filmes etnográficos de terem confiscado aos africanos a capacidade de se reinventarem e, consequentemente, de terem anulado a possibilidade da auto-representação? Diferentemente de outros cineastas-etnólogos, Jean Rouch conseguiu, ao seu modo, escapar dessa armadilha. Pelo menos, conseguiu minorar as suspeições colonialistas por opções estilísticas que revolucionaram e consagraram toda a sua arte do documentário etnográfico. Como se sabe, Rouch chega em Níger em 1940 – como uma espécie de Lawrence da Arábia – como simples funcionário da administração colonial. Mas, rapidamente, ele troca a sua função de engenheiro pelo papel de etnólogo atento aos hábitos culturais e sociais locais. Realiza seus primeiros documentários que se distinguem nitidamente da linha do cinema colonial dominante naquele período. Mesmo assim, são filmes etnográficos, e como tais levantam a incontornável questão das distorções e conotações políticas ligadas àquilo que Robert Stam chama de “fardo da representação” do Outro, do diferente (STAM; SHOAHT, 2006). Mas, vista de outro ângulo, a filmografia do etnólogo francês permite considerações interessantes sobre o que é rotulado hoje como “controle das minorias sobre a representação”. Jean Rouch levou até as últimas consequências a estética do cinema direto nas suas investigações etnográficas sobre as sociedades francesas e africanas. Se ele pode ser legitimamente considerado como pioneiro no recurso a dispositivos de filmagem e de narrativa que libertam o Outro do peso da representação, é porque em muitos de seus filmes observa-se um protagonismo ativo do ser africano. A aparente espontaneidade, fingida ou natural, parece devolver aos atores negros uma certa expressão da subjetividade que rompe com a sua passividade nos demais filmes coloniais. Jaguar e Eu, um negro são construídos como percursos. No primeiro filme citado, há uma viagem, uma travessia de um país ao outro, a transição de uma cultura africana à outra (a do Níger e da Costa do Ouro) protagonizada por três personagens. No segundo filme, trata-se de uma deambulação fortemente marcada pela subjetividade de um único indivíduo no interior de uma mesma cidade. Nesses deslocamentos, é como se o sujeito africano estivesse protagonizando sua história. É como se os protagonistas levassem o filme aonde bem quisessem. A câmera participativa se contenta em segui-los nas suas trajetórias. Em Jaguar, o êxodo se transforma rapidamente num grande pretexto para os três personagens lançarem um olhar etnográfico sobre a realidade circundante, sobre os povos, as mulheres e hábitos culturais que encontram na sua peregrinação para a Costa do Ouro. Antes dos três personagens se transformarem em objeto de curiosidade para uma plateia europeia, Jean Rouch toma a liberdade de situá-los numa inédita relação de alteridade com outros hábitos culturais que eles vão encontrando no caminho. Entre estranhamento e fascínio, eles produzem discursos, fazem comentários de cunho valorativo. Além das fortunas materiais que trazem desse eldorado africano, o que parece importar são as narrativas, as histórias que terão de contar aos seus conterrâneos. Com a opção de deixar os seus personagens se expressarem livremente sobre as imagens registradas, é como se Rouch quisesse mostrar que os negros africanos não são todos “iguais” (como ainda se pensa na Europa).

Se muitos definem o cinema de Rouch como uma “etnoficção”, é por causa da mistura de dois tipos de subjetividade na realização de seus documentários: a do cineasta (com controle sobre aquilo que filma) e a do sujeito filmado (livre, até certo ponto, para interagir na representação). Essa restituição do estatuto de sujeito pleno ao homem africano foi objeto de várias teses e comentários. Embora essa opção estilística e ética já estivesse presente nos trabalhos de outros documentaristas, nos documentários de Rouch o protagonismo do homem negro filmado pelo homem branco ganha uma nova ressonância e relevância. Cria uma cisão entre filmes feitos sobre a África (em que os homens fazem apenas parte do ambiente) e filmes “feitos na África”, nos quais se conta com a participação ativa e consciente dos próprios africanos. Para Guy Gauthier, não há dúvida de que a técnica do cinema direto (defendida por Rouch) trouxe, na maioria dos documentários, “um aprofundamento do momento vivenciado, uma possibilidade de transferir a palavra aos atores da história, que não são os atores do filme” (GAUTHIER, 1995: 145). O recurso à voz, a do próprio documentarista e a dos atores da história, acabou sendo uma marca registrada nos filmes de Rouch sobre a África. A voz do homem africano ecoa atrás e através das imagens registradas pelo homem branco a ponto de ser uma narrativa em paralelo. Se os documentários de Jean Rouch podem ser classificados e comparados como aquilo que Gauthier chama de “filmes-de-vida”, é por causa da “qualidade de escuta de seus personagens-vetores, cuja fala é rica e prenhe de experiência”.

**Sobre o autor: Natural de Costa do Marfim, Mahomed Bamba (1966-2015) foi professor na Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador de cinema e audiovisual com foco nos cinemas africanos e da diáspora.

REFERÊNCIAS
GAUTHIER, Guy. Le Documentaire: un autre cinéma. Paris: Armand Colin, 1995.
STAM, Robert; SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

 

 

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