Su Friedrich e outras imagens para o invisível

Su Friedrich e outras imagens para o invisível

Com ares de recomeço, a décima primeira edição do Olhar de Cinema volta às salas de cinema de Curitiba, trazendo consigo o retorno da Olhar Retrospectivo, uma mostra que entendemos só fazer sentido na experiência coletiva e imersiva que o presencial nos proporciona. Para inaugurar essa retomada, conscientes de que já não era sem tempo, apresentamos, pela primeira vez, uma retrospectiva dedicada ao trabalho de uma realizadora mulher, colocando a obra de Su Friedrich no centro de uma constelação composta também por filmes de outras e outres cineastas.

Nascida em 1954, em uma família de origem alemã residente na Costa Atlântica dos Estados Unidos, Friedrich começou a fazer filmes em Nova Iorque, na década de 1970, sob grande influência do cinema de vanguarda norte-americano e dos movimentos sociais feministas do período, sendo reconhecida, anos mais tarde, tanto como uma das mais importantes cineastas experimentais estadunidenses do fim do século XX, quanto como um dos nomes incontornáveis para se pensar as autorias lésbicas no cinema. Transitando entre a película (em especial, na bitola de 16mm), o vídeo e o digital, em mais de quatro décadas de carreira, Friedrich já realizou filmes nos formatos de curta, média e longa-metragem, atuando como diretora, roteirista, fotógrafa e montadora na maioria deles.

Apesar de sua filmografia suscitar, com muita frequência, uma série de rótulos (alguns deles já mencionados aqui mesmo, neste texto), Friedrich sempre se mostrou mais interessada na liberdade das zonas de indefinição, nas quais as inquietações formalistas podem se encontrar com ambições narrativas, a ficcionalização pode se emaranhar a procedimentos classicamente documentais e as questões sociais podem ser miradas a partir também da própria intimidade. Colocando em operação uma das mais importantes asserções dos feminismos da década de 1960 – a de que o pessoal é político -, Friedrich inscreve, ao longo de toda sua obra, um “eu” no qual também se implicam diferentes “nós”, promovendo ressonâncias entre a singularidade de suas experiências e a dimensão coletiva que as atravessa e conforma, gesto que procuramos perseguir e amplificar na organização desta mostra.

De seus mais de vinte filmes, optamos por exibir um conjunto de sete obras, atravessando diferentes períodos de seu trabalho como diretora. Nesse percurso, que vai de um de seus primeiros curtas “Pelo Rio Abaixo”, de 1981, a um dos trabalhos mais recentemente lançados “Não Posso Te Dizer Como Me Sinto”, de 2016, acompanhamos os desdobramentos dos anseios de uma cineasta profundamente comprometida com o prazer de realizar e de assistir a filmes. Alguém que investe na sensualidade do ritmo dos cortes e na interação entre imagens e palavras, que dialoga com o público à medida em que também conversa consigo mesma, e que faz do cinema um espelho no qual outras (e outros) também possam se reconhecer. Quer seja ao falar dos próprios sonhos, da história familiar, do desterro, da lesbianidade, da infância, da velhice ou das doenças que acometem um corpo com útero, no coração de seu trabalho está o risco de lançar um olhar tão sensível quanto esteticamente rigoroso, para aquilo o que permanecia, até então, invisível.

Ironicamente, como não poderia deixar de ser, a empreitada de realizar essa retrospectiva nos colocou frente à problemática do apagamento sistemático de determinadas filmografias. Como ocorre com o trabalho de tantas outras (caberia mesmo afirmar: da maioria das) artistas mulheres, os filmes de Friedrich ainda não atraíram a devida atenção arquivística, não passaram por processos de restauro e poucos foram remasterizados digitalmente para arquivos DCP, o que gradativa e continuamente os afasta dos espaços de exibição, em um ciclo de invisibilidade que se retroalimenta.

Na contramão desse continuum do apagamento, a obra de Friedrich, por sua vez, reflete e convoca uma abertura para outros regimes de memorialização. Um desejo e uma ética mobilizados não só em seu trabalho como realizadora, mas também nos projetos que desenvolve enquanto pesquisadora e professora vinculada à Universidade de Princeton. Destacamos, dentre suas mais recentes iniciativas, o site Edited By: Women Film Editors, no qual ela reúne informações sobre mais de duzentas mulheres editoras, visibilizando seus trabalhos e reconhecendo suas contribuições para o desenvolvimento da montagem cinematográfica.

Na intenção de estabelecer diálogos com os filmes de Su Friedrich, bem como de produzir um ritmo de pensamento que possa expandir sua obra, essa Retrospectiva traz filmes de outras cineastas e videastas. A proposta é trabalhar com uma montagem de obras que potencializem a dimensão (tão presente nos filmes de Friedrich) de que o individual e o coletivo são intrínsecos, que a alteridade é constitutiva de toda e qualquer existência e de que a experimentação com a imagem desconhece marcações fixas.

Fazem parte dessa constelação filmes de cineastas com filmografias já amplamente reconhecidas, como Germaine Dulac (1882-1942), marco do cinema surrealista, Maya Deren (1917-1961), referência absoluta do cinema experimental, Chantal Akerman (1950-2015), que soube tão bem explorar o feminismo como uma forma fílmica, Barbara Hammer (1939-2019), pioneira em um cinema lésbico experimental, Leontine Sagan (1889-1974) e Cheryl Dunye (1966 -), ambas autoras de obras que se tornaram basilares para pensar o cinema lésbico, bem como outras ainda pouco investigadas no contexto brasilero, como Thirza Cuthand (1978 -), videasta experimental sapatão com ascendência escocesa, irlandesa e indígena, e Zeinabu Irene Davis (1961-), cineasta e professora de cinema experimental que participou do movimento L.A. Rebellion

Por Camila Macedo, Carla Italiano e Carol Almeida

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